A fábula do Homem Genial Que Vendia Clichês
O Mundo Dos Homens De Bem
Era uma vez um mundo onde todos eram homens brancos heterossexuais de poder aquisitivo considerável. Esse mundo era perfeito. Todos se entendiam, compartilhavam valores, dividiam gostos em comum, riam das mesmas piadas.
Tão certos estavam os homens brancos heterossexuais de poder aquisitivo considerável da maneira como conduziam as coisas que se intitularam Homens de Bem. E, com a objetividade que lhes era própria, denominaram o mundo que habitavam de Mundo Dos Homens De Bem.
O mais importante para manter a harmonia no Mundo Dos Homens De Bem é que todos eles se consideravam sensacionais, geniais, agradáveis e confiavam muito, muito, em sua sabedoria pra definir o modo de ser de tudo que estava sob seu domínio.
Com todas essas qualidades, não acharam difícil criar, juntos, as regras sobre o lugar e o modo de ser de cada objeto que havia naquele mundo. E isso era importante, porque havia muitos e muitos objetos, que os Homens de Bem sabiam que haviam sido postos no mundo para tornar tudo mais agradável e divertido para eles.
Observando as regras que estipularam, os Homens de Bem sabiam direitinho pra quê servia cada objeto, qual a sua importância no mundo, quais eram as qualidades que fariam com que o objeto pudesse ser considerado melhor em relação a um outro parecido.
Somando todas essas regras, eles conseguiam definir uma quantia em dinheiro que teria que ser paga pelo homem que quisesse adquirir cada objeto e quanto de admiração dos demais seria devida ao homem que pagasse o preço.
Ocorre que, como eram muitos e muitos os objetos disponíveis no Mundo Dos Homens De Bem, às vezes era difícil pra eles definir prioridades ou se decidir entre os objetos.
Percebendo isso, um dos mais geniais Homens de Bem resolveu que iria ganhar seu próprio dinheiro pra comprar objetos convencendo outros homens a comprar determinados objetos.
Claro, ele encontrou uma forma genial de fazer isso. Ele iria vender clichês – as ideias-prontas que todos os Homens de Bem já compartilhavam sobre a função, a importância e a qualidade dos objetos. Mas faria isso com tal inteligência que os outros achariam que o clichê era uma ideia nova, feita sob medida pra satisfazer um desejo.
Obstinado e ciente de sua genialidade, ele transformou isso numa fórmula bem simples: “terei sempre uma grande ideia capaz de conectar meu consumidor ao produto, uma ideia que façam os outros Homens de Bem sorrirem e dizerem ‘como não pensei nisso antes?’.”
E, assim, ele se profissionalizou. Tornou-se o Homem Genial Que Vendia Clichês. Um trabalho muito importante no Mundo Dos Homens De Bem, onde possuir e ostentar objetos era essencial para a felicidade.
As décadas de ouro do Homem Genial Que Vendia Clichês
Por décadas, o Homem Genial Que Vendia Clichês fez muito sucesso com a sua fórmula simples. Era impressionante. Brilhante. Genial (eu já disse que ele era genial?).
Suas grandes ideias vendiam. Ou – como ele tinha posto numa de suas frases que faziam clichê parecer novidade – “criavam predisposição para a compra”.
Ele sabia o que o consumidor queria ouvir. Ele colocava isso de um um jeito que ninguém tinha pensado. E ele fazia isso – como gostava de destacar – “respeitando a inteligência do consumidor”. Bingo.
O mundo era mais leve e divertido graças à sua criatividade, os clichês ganhavam novo brilho graças à sua sagacidade e o sucesso do mercado de objetos comprovava que tudo estava no seu devido lugar.
Havia sempre um limite respeitoso – aquele que os Homens de Bem apelidaram de Bom Senso – que as elegantes ideias do Homem Genial Que Vendia Clichês jamais violavam. Como ele sabia disso?
Ora, ele sabia porque era genial e, sendo genial, tinha certeza de que somente Tolos não entenderiam a sofisticação do bom humor que empregava em seu trabalho. Mas aquele não era um Mundo De Tolos, e, sim, de Homens de Bem, que sabem das coisas. E esses homens continuavam elogiando e premiando seu trabalho, o que confirmava o Bom Senso de suas peças publicitárias.
Genial, genial, genial.
A crise dos Objetos Rebeldes
Um dia, porém, algo passou a não correr tão bem. Por uma insondável razão, alguns dos objetos disponíveis no mundo passaram a não se comportar como previsto. Empacavam, emperravam. De repente, simplesmente deixavam de servir ao propósito ditado pelas regras do mundo.
O mais curioso é que isso começou a ser tão reiterado que mais parecia que, ao funcionarem mal, os objetos queriam definir seu próprio lugar no mundo, seu valor, as qualidades que os fariam melhor. Passaram a ser conhecidos como Objetos Rebeldes.
No início, os Homens de Bem acharam que podiam corrigir os Objetos Rebeldes pelo reforço das regras. Se as gritassem, se fossem mais rígidos em sua aplicação.
Fizeram um ajuste na Cartilha De Valor Dos Objetos para estabelecer, categoricamente, que o mau funcionamento era motivo bastante para que um objeto fosse xingado, descartado, tratado como lixo. Pensaram que, se todos os Homens de Bem se unissem pra aplicar a Cartilha, em breve os Objetos Rebeldes seriam corrigidos por seus donos e o mundo voltaria a ser leve e agradável como era.
Nessa estratégia, o Homem Genial Que Vendia Clichês tinha um papel relevantíssimo. Suas ideias pra requentar os clichês lembravam a todos, inclusive aos Objetos Rebeldes, como era divertido, leve, harmonioso e correto o mundo onde cada objeto cumpria seu papel, ditado pelos Homens de Bem.
A revolução das Novas Pessoas
O plano não deu completamente certo.
Quando os Homens de Bem deram por si, os Objetos Rebeldes, imaginem, tinham chegado ao ponto de dizer algo.
Diziam que não eram objetos compondo o mundo, mas, tanto quanto os próprios Homens de Bem, sujeitos, e que por isso queriam também dizer como deviam ser escritas as regras sobre o mundo. O que, convenhamos, era muito estranho, pois objetos não costumam ter opiniões.
Foi tanta a persistência dos Objetos Rebeldes que alguns Homens de Bem foram sendo levados a perceber que aqueles objetos, que eles haviam, desde o início do mundo, regulado por suas regras, não eram, mesmo, objetos.
“Quem diria!”- eles se surpreendiam – Mulheres, inclusive as Lésbicas, Negros, Gays e Transexuais pertenciam à categoria Pessoas [1]. Essa categoria era diferente da categoria Coisas, onde estavam os carros (inclusive os porsches!), os cigarros, os refrigerantes, os sutiãs, as palhas-de-aço.
Hm. Parecia que isso exigia revogar um monte de regras sobre o mundo e criar outras, junto com os Objetos Rebeldes. Esses, aliás, a partir dali reivindicavam ser reconhecidos como as Novas Pessoas.
Isso, claro, não agradou a todos os Homens de Bem. Uma boa parte deles se chateou. O mundo era tão agradável, funcionava tão bem. Tudo tinha seu lugar. As piadas eram tão engraçadas. E os comerciais-que-conectavam-o-consumidor-ao-produto-respeitando-sua-inteligência-e-o-limite-do-Bom-Senso, esses eram, não sei se eu já disse, geniais. Por que, Senhor Deus Homem Branco De Barba Sentado Nas Nuvens, por que colocar tudo isso a perder por conta das Novas Pessoas?
O inconformismo do Homem Genial Que Vendia Clichês
Entre a multidão de inconformados, estava o Homem Genial Que Vendia Clichês. Era compreensível.
Tudo o que ele tinha conseguido – e no Mundo Dos Homens De Bem é muito importante conseguir Coisas – era fruto da sua incrível capacidade de modelar os clichês extraídos das regras que as Novas Pessoas queriam derrubar.
Um dos motivos pelos quais o Homem Genial Que Vendia Clichês estava bravo com as Novas Pessoas é que ele tinha convencido a si mesmo que seu trabalho era importante até para o bem delas, e elas não pareciam reconhecer isso. Em especial, as Mulheres se mostravam ingratas. Eram incapazes de perceber a doação generosa de sua genialidade, em peças publicitárias pensadas pra melhorar a vida delas.
Uma dessas doações aconteceu quando ele colocou, em um de seus comerciais um moço “doce e delicado” pra “conversar” sobre palhas-de-aço com donas-de-casa que, no mundo real, não mereciam nenhuma atenção dos homens a quem elas serviam.
Graças à generosidade do Homem Genial Que Vendia Clichês, as donas-de-casa ganharam um alento (um Homem Imaginário que se interessava pelo fascinante cotidiano do material de limpeza), construído com bom humor em cima de um clichê bem aceito (o Homem Sabe-Tudo, que ensina às Mulheres o que é bom e o que é ruim), sem desafiar em nada a funcionalidade do objeto Mulher-Dona-De-Casa (Cuidados Do Lar Com Um Sorriso No Rosto). Não era perfeito?
Outra iniciativa benevolente, ele lembrava, foi transformar o primeiro sutiã em um símbolo de superação da angústia de uma adolescente que comparava seu corpo com o das colegas de seios mais desenvolvidos. Como ele fez isso?
Bem, na década de 60, as feministas chegaram a queimar sutiãs, simbolizando a ruptura com algumas regras do Mundo Dos Homens De Bem. Mas agora eram os anos 80 e o Homem Genial Que Vendia Clichês, sempre surpreendente, achou bacana reciclar clichês relativos à objetificação do corpo da mulher e reconstruir a aura em torno do sutiã.
Ele estava lá pra explicar para às jovens o que elas deviam achar dos sutiãs. E elas deviam achar que ganhar um sutiã era um ritual que permitia às Mulheres conquistar seu lugar no Mundo Dos Homens De Bem. No comercial, o grande triunfo da menina que se tornava Mulher foi consolidado no momento em que, enquanto ela andava na rua (quem nunca?), um homem lança um olhar lascivo para seu corpo.
Em um primeiro reflexo, ela esconde os seios com uma pasta de escola. Mas, em seguida, sorri e estufa o peito, pois percebe que, enfim, tinha ascendido ao Pedestal Da Cobiça Masculina, o lugar mais importante que os objetos podiam ocupar no Mundo Dos Homens De Bem.
A gente poderia pensar que, passados respectivamente 40 e 30 anos desde que teve essas grandes ideias, o Homem Genial Que Vendia Clichês tinha sido capaz de colocar as coisas em perspectiva. Que, no máximo, se orgulharia do sucesso que fez à época, mas entenderia que esse tipo de publicidade não se encaixava mais no mundo integrado pelas Novas Pessoas. Mas não. Ao contrário.
Ele estava convicto de que seu garoto-propaganda do material de limpeza e a adolescente que toma consciência de seu valor na sociedade através do desejo masculino eram figuras precursoras do tal empoderamento feminino. É por isso que não se conformava com os questionamentos e críticas sobre o seu jeito de vender clichês.
Fato é que, com as Novas Pessoas palpitando sobre tudo, o mundo parecia haver ganhado um número considerável de Tolos incapazes de perceber a genialidade, permeada de Bom Senso e bom gosto, das peças publicitárias das quais ele mais se orgulhava.
Os aliados das Novas Pessoas
Para agravar o desconforto do Homem Genial Que Vendia Clichês, a essa altura, vários Homens de Bem que, seguindo seus passos, tinham se tornado publicitários, agora queriam ouvir os Tolos.
Uns ouviam porque de fato tinham se convencido que as Novas Pessoas tinham tanto direito quanto eles de dizer qual era seu lugar no mundo. Outros, porque, mesmo não convencidos disso, perceberam que fariam mais sucesso e dinheiro se soubessem respeitar as regras que as Novas Pessoas defendiam.
Fosse por que motivo fosse, alguns antigos discípulos do Homem Genial Que Vendia Clichês, juntamente com Novas Pessoas que também conseguiram um lugar ao sol no negócio de “criar predisposição de compra”, simplesmente não queriam mais fazer isso usando clichês.
A grande ideia que tiveram – aquela que o Homem Genial Que Vendia Clichês não tinha sido capaz de ter – era fazer tudo verdadeiramente diferente. Encarar o desafio de construir uma nova linguagem publicitária que reconhecesse e abraçasse a luta das Novas Pessoas. Que fosse capaz de mudar com essa luta, aprender com ela, ousar com ela.
O risco era grande. Os publicitários podiam comprometer sua confiabilidade, deixar de ser respeitados. Irritar ainda mais os Homens de Bem, sem conseguir nada em troca. Perder dinheiro, perder clientes.
Mas a grande ideia se espalhou. E um monte de Gente (e, nessa altura, Gente não era um grupo apenas de homens brancos heterossexuais de poder aquisitivo considerável) se identificou com essa nova publicidade. Ela partia da premissa de que todos as Pessoas tinham legitimidade pra definir qual ia ser o seu lugar no mundo e, também, direito de exigir que fosse abolida a publicidade que não respeitasse essa definição.
A reação do Homem Genial que Vendia Clichês
O Homem Genial Que Vendia Clichês, como tantos outros inconformados, foi ficando muito mal-humorado diante dessas mudanças. Afinal, bem, ele vendia clichês. Se seus bons e velhos clichês, eternamente recombinados e repaginados perdessem a popularidade, que matéria-prima lhe restaria?
Há que se dizer que não havia, assim, algo como o risco de o Homem Genial Que Vendia Clichês ir à ruína. Mas é que eram tantas e tantas décadas acostumado a dizer o que as Pessoas deviam comprar, e por quê, que o simples dissabor de o mundo não ser mais tão dócil e receptivo às suas ideias já era motivo suficiente pra ele reagir.
Por isso, ele decidiu vir a público corrigir o rumo das coisas.
Por tantos anos, ele, como poucos, foi reconhecido como o homem que sabia o jeito certo, a medida precisa e o tempero perfeito de uma boa peça publicitária. A quem mais, se não a ele, elegante como só, caberia explicar os limites para que as Novas Pessoas fossem aceitas como consumidores, mas sem bagunçar tudo o que funcionava tão bem no mundo?
Foi assim que ele resolveu conceder uma entrevista para reafirmar, com toda a sua sabedoria e brilhantismo, a superioridade das regras dos Homens de Bem em relação as regras desejadas pelas Novas Pessoas.
A entrevista constrangedora
A entrevista do Homem Genial Que Vendia Clichês foi concedida para um jornalão. E, como era o que sabia fazer, nadou no seu mar de clichês.
Mas, talvez pelo fato de ser uma entrevista, e não uma peça publicitária, não houve muito tempo pra refinar os clichês, dando a eles os ares de vanguarda intelectual que eram sua marca. Apesar da inteligência do entrevistado, os clichês saíram sem-sal, requentados, banais. Como colhidos de qualquer manifestação reacionária das redes sociais.
O Homem Genial Que Vendia Clichês então resmungou contra o “politicamente correto”, tão “chato”. Defendeu o “politicamente incorreto”, tão “engraçado”, ainda que “mal-educado”.
Distinguiu “oportuno” de “oportunista”, lamentando que a maior parte das “causas sociais” contenha “um componente de oportunismo”.
Denominou a nova geração de publicitários que pensam diferente dele de “pessoal mais verdinho” incapaz de lidar com “qualquer ideia que tenha uma conotação de irreverência”.
Sentenciou que agradar minoria é “moda”.
Detonou o leitor sensível – pessoa contratada pelas editoras pra detectar trechos ofensivos às minorias -, que não passava de um “censor disfarçado”.
Criticou as pessoas que “ciclicamente saem repetindo […] loucuras” que perturbam “o coitado do paradigma”. Informou que entre essas loucuras estavam os termos “desconstrução” e “empoderamento feminino”.
Para o Homem Genial Que Vendia Clichês, “clichê constrangedor” eram todas as ideias novas que, justamente, contrastavam com os queridos clichês que ele cultivava a meio século. E, por isso, o empoderamento feminino estava mesmo na mira. Ele receitou: “Empoderamento feminino se pratica, não se prega”. E como se pratica?
Claro, ele sabia. Afinal, ele tinha praticado empoderamento feminino quando fez os comerciais da palha-de-aço e do sutiã. Ele sabia tanto do assunto que pôde presentear “as meninas que falam sobre empoderamento feminino”, sem ter “cultura disso”, com uma “história curiosa”, sobre como ele, nos anos 80, salvou uma marca de cigarro dirigida a Mulheres apenas insinuando que deixar de fumar a marca seria acatar o pedido de um homem.
Enebriado pela certeza de ser o portador inquestionável do Bom Senso, deixou claro que, no seu trabalho, considerava, sim, ouvir o consumidor. Mas só se a opinião do consumidor não fosse “estapafúrdia”, algo que apenas o consumidor e “mais cinco estapafúrdios quiserem”. Ele não chegou a dizer exatamente o que é uma coisa estapafúrdia (penso, eu, que ele imagina algo como reclamar da bem-humorada publicidade feita à base de piadas sexistas). Mas ele disse o que fazer diante das coisas estapafúrdias: seguir apostando nas “convicções da boa persuasão”.
Aqui e acolá, tentou emplacar uma trendmark, como “politicamente saudável” e “ética elástica”. Talvez fosse um último esforço de envernizar a defesa de seus clichês de estimação.
Mas não adiantou.
O fechamento da entrevista viria a ser um vexame: o Homem Genial Que Vendia Clichês, se achando muito, muito genial e irreverente, contou sua ideia para um comercial em que um carro de luxo e uma Mulher eram colocados em comparação. No final, claro, o carro de luxo se provava um objeto mais interessante que a Mulher.
Estimo que o Homem Genial Que Vendia Clichês tenha galgado nesse momento 7 níveis crescentes de constrangimento, [2], após o qual restava à repórter, mesmo, encerrar a entrevista.
Foi assim que o Homem Genial Que Vendia Clichês acabou se revelando nada mais que um dos patéticos clichês que ele mesmo poderia vender por aí: o Tiozão Do Close Errado. Um Homem de Bem convicto de suas ideias retrógradas, reclamando de como o mundo politicamente correto está matando o bom humor e a alegria de viver. Incapaz de perceber que suas piadas só servem pra constrangê-lo. Agarrado aos privilégios que o Mundo Dos Homens De Bem lhe concede, sem se importar com o fato de que esses privilégios não cabem mais no mundo compartilhado com as Novas Pessoas.
O Mundo Novo e o Homem Que Segue Vendendo Clichês
Ninguém duvida que o Homem Genial Que Vendia Clichês seguirá tendo muito poder. Ele não vai ficar pobre, nem perder prestígio entre os seus. Pouco provável que mude o que se acostumou a fazer. Deve seguir vendendo clichês, enquanto lamenta a chatice do Mundo Novo, aquele em que ele é forçado a compartilhar poder com as Novas Pessoas.
Talvez a entrevista constrangedora não tenha sido mais que uma estratégia pra emplacar nos toptrends seu nome premiado. Provavelmente, muitos, e muitas, considerarão que a entrevista traz o brilhantismo do Homem Genial Que Vendia Clichês. Dirão, quem sabe, que “ele teve coragem de dizer o que todo mundo estava pensando”. Porque é exaltando seus ídolos decadentes que o Mundo Dos Homens De Bem se reorganiza, teimando em tratar Pessoas como se fossem objetos.
Mas, então, por que gastar tanto espaço pra contar essa fábula?
Porque é importante afirmarmos que o Mundo Novo está em construção. A duras penas, a gente sabe. Mas é importante detectarmos que a mudança aflige quem se beneficia da opressão que comanda o Mundo Dos Homens de Bem.
O Homem Genial Que Vendia Clichês, assim como outros que vão a público tentar manter na marra a imperatividade das regras que asseguram seu lugar de privilégio, sabe que está perdendo algo.
Imagino que, a cada dia que alguém do ” pessoal mais verdinho” lança uma peça que (ai, desculpa, tio) rompe os paradigmas da publicidade criados no século passado, o Homem Genial Que Vendia Clichês sabe que, no mínimo, está perdendo a atenção de parte do público, que devora entusiasmada os novos comerciais cheios de ideias novas.
Talvez, em algum momento, vendo os novos comerciais cheios de ideias novas, de desconstrução, de empoderamento efetivamente posto em prática, ele se pegue dizendo pra si mesmo: “como não pensei nisso antes?”
E, então, sinta o arrepio de saber, com toda a sua inteligência, que “Genial” já não cabe no seu nome. E que ele hoje é apenas o Homem Que Segue Vendendo Clichês.
Não dá pra concluir a fábula sem reconhecer que o Homem Que Segue Vendendo Clichês tem alguma razão.
Há mesmo uma “vida” por cancelar: aquela que no Mundo Dos Homens De Bem é ditada como “normal”.
Que se cancele esta, pra que surjam milhares de vidas, as vidas contadas por cada Nova Pessoa que quer encontrar seu lugar nesse mundo.
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[1] Mulheres e outras minorias têm conseguido, com luta, ocupar espaços na sociedade. Infelizmente, as regras que privilegiam os homens brancos heterossexuais de poder aquisitivo considerável continuam fortes o bastante pra manter os pobres excluídos da categoria Pessoas. [clique aqui para voltar]
[2] Conheça aqui os 7 níveis de constrangimento experimentados na parte final da entrevista:
Nível 1: O Homem Genial Que Vendia Clichês introduz uma historinha (que ele, orgulhosamente, informa que preparou) com “É uma história aparentemente machista…”. A gente já sabe onde vai dar uma coisa que começa assim: numa história verdadeiramente machista.
Nível 2: Ele assegura: a historinha “seria eficiente, encantaria os homens, que seria o público, mas não desagradaria as mulheres”. Sim, porque se é algo que os clichês ensinaram pra ele é que ninguém melhor do que um homem pra definir o que as mulheres pensam e sentem.
Nível 3: Apresentada a historinha, descobrimos que ela serve pra vender Porsches, carros cujo público-alvo “é 100% homens”. E a historinha diz que um carro desse é “melhor do que mulher, que, diga-se de passagem, é excelente”. Eita. Estamos falando das mulheres, aquelas Novas Pessoas, no mundo de hoje, e ele vai meeesmo dizer que uma ideia publicitária genial parte de tratá-las como um objeto de desejo do mundo dos homens brancos heterossexuais de poder aquisitivo considerável? E vai dizer isso a uma repórter… mulher? Evidente que vai, afinal, estamos falando do Homem Genial Que Vendia Clichês.
Nível 4: Segue o entrevistado, exultante, apresentado as 3 “provas” do seu “teorema”: o seu Porsche não fica aborrecido se você compra outro (hilário AND original); quem se desfaz de um Porsche ganha dinheiro (e eu achando que carro, ainda mais de luxo, era tudo menos investimento, mas vai ver que minha cabecinha não é muito boa com números); todo homem que tem Porsche tem mulher, mas nem todos que têm mulher têm Porsche (uhuuu, um carro pra preencher o falo, a indústria agradece a fragilidade dos egos masculinos). Estamos só no meio.
Nível 5: O Homem Genial Que Vendia Clichês anuncia que o grande final da historinha exige um “complemento” pra agradar o público feminino. Que tal colocar no anúncio uma mulher com cabelos esvoaçantes e falar na linguagem que elas possa entender? Fica assim: “Um homem realmente interessante te dá de presente um secador de cabelos como esse”. Nesse nível crítico, a repórter tenta, mesmo, ajudar. Pergunta se a ideia não poderia ser vista como ultrapassada, pensando no que as mulheres querem hoje. Mas o interesse em escutar e refletir passa longe. Reina, mesmo, só o constrangimento de não dar a mínima pra deixa da entrevistadora.
Nível 6: Parece simples ao entrevistado superar o problema dos possíveis resmungos das mulheres. Tudo se resolveria controlando a mídia, ou seja, sabendo em qual meio divulgar aquela genial, simplesmente genial, peça publicitária. A repórter insiste (lembremos, a interlocutora era uma m-u-l-h-e-r), afirmando que para algumas mulheres “esse tipo de propaganda seria inaceitável em qualquer meio”, afinal, veja bem, “você está comparando uma mulher a um Porsche”. A resposta justifica estabelecer um nível de constrangimento só pra ela.
Nível 7: A resposta do entrevistado é: “Mas aí você tem que cancelar a vida”. Cancelar. a. vida. Para o Homem Genial Que Vendia Clichês, um mundo em que houver rejeição a uma peça publicitária em que uma mulher é comparada a um carro é um “mundo totalmente antisséptico”, em que nada mais resta à humanidade a não ser, como ele decretou, cancelar a vida. Bem dramático, não? [clique aqui para voltar]
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*Todos os elementos que indicam o modo de pensar do Homem Genial Que Vendia Clichês foram inspirados na entrevista dada à Folha de S. Paulo por Washington Olivetto.
**A foto que estampa o post é de autoria do Fernando Faria, que lembrou do blog e gentilmente nos enviou essa imagem, feita no Centro de Florianópolis.
***Agradeço às Mulheres Incríveis que debateram comigo o conteúdo da tal entrevista: Paula Bernardelli (claro), Polianna Santos, Kelly Barros (que pediu textão d’a Fala), Isabel Mota, Daniela Teixeira, Juliana Bueno, Débora Vic, Geórgia Nunes, Juliana Freitas e Eliane Belfort. O post é inspirado em todas vocês.
Cresceu ouvindo que era uma menina "cheia de opinião", teimosa, atrevida e inconformada. Um dia, entendeu que esses eram seus melhores atributos pra ser uma mulher capaz de fincar pé nesse mundo de homens. Por isso, escreve.